João Pedro Pita
Com o tempo, a Igreja passou a celebrar anualmente a festa de cada mártir no dia da sua morte, entendido como dies natalis: “o dia do nascimento” para o Céu. Contudo, à medida que o número de mártires aumentava e o calendário já não podia acolher todos os seus nomes, a Igreja instituiu uma celebração comum para todos os santos e santas, conhecidos e desconhecidos, cuja santidade só Deus sabe. Celebrar Todos os Santos, porém, não é apenas fazer memória, recordar o seu passado, mas celebrar também o seu presente, porque já se encontram na glória de Deus e, por isso, podem interceder, pedir por nós.
A memória não é apenas algo essencial à vida e à sobrevivência, é também um lugar sagrado por excelência. Sem memória não haveria família ou amizade, sem memória não haveria fé nem ciência.
A fé cristã nasce precisamente da memória: da memória viva do povo hebreu, que recorda as maravilhas realizadas por Deus que se vai revelando gradualmente ao longo do tempo, e, de modo pleno, a revelação última, final e completa da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Contudo, mais do que simples memória a fé cristã é um memorial. Recordar, na tradição bíblica, não significa apenas trazer ao pensamento o que aconteceu no passado, mas tornar presente, atual, esse mesmo momento, trazer para o hoje o agir salvador de Deus e responder-lhe com fé e gratidão. Deus agiu e salvou e por isso age e salva hoje, agora.
Este memorial manifesta-se em múltiplas expressões: na Sagrada Escritura, que conserva e transmite a história da relação de Deus com a humanidade; na Eucaristia, memorial por excelência do mistério pascal; na vida dos santos, que são memória e testemunho da fidelidade da fé; e também na história pessoal ecomunitária de cada crente, onde se reconhecem os sinais da ação divina. Como estamos em novembro, explorarei a memória dos que já partiram, que celebrámos no dia de Todos os Santos e no dia dos Fiéis Defuntos.

Em primeiro lugar, é importante recordar que a fé cristã nasceu num contexto de perseguição. Os primeiros cristãos, frequentemente martirizados, tornaram-se testemunhas vivas do Evangelho. Para preservar a sua memória, fidelidade e coragem, as comunidades cristãs erguiam altares nos locais onde os mártires tinham dado a vida, como é o caso da Basílica de São Pedro em Roma, construída sobre o túmulo do apóstolo Pedro.
Com o tempo, a Igreja passou a celebrar anualmente a festa de cada mártir no dia da sua morte, entendido como dies natalis: “o dia do nascimento” para o Céu. Contudo, à medida que o número de mártires aumentava e o calendário já não podia acolher todos os seus nomes, a Igreja instituiu uma celebração comum para todos os santos e santas, conhecidos e desconhecidos, cuja santidade só Deus sabe. Celebrar Todos os Santos, porém, não é apenas fazer memória, recordar o seu passado, mas celebrar também o seu presente, porque já se encontram na glória de Deus e, por isso, podem interceder, pedir por nós. Somos uma só família na fé: nós, os fiéis ainda em peregrinação na Terra, fazemos memória deles; e eles, na comunhão celeste, rezam por nós junto de Jesus Cristo. É esta a Comunhão dos Santos, que une o Céu e a Terra num mesmo amor e esperança.

Esta memória do passado é também sinal de esperança para o presente. Recordar as vidas, virtudes e testemunhos dos santos inspira-nos a viver com a mesma entrega o presente. Tal como as nações exaltam os seus heróis, também a Igreja venera os seus homens e mulheres, que apesar de imperfeitos como todos nós, viveram para Deus, por Deus e com Deus, amando-O sobre todas as coisas e amando e servindo o próximo como a si mesmos. São os “heróis da fé” que são sinais de que a santidade é possível e acessível a todos.
No dia seguinte, a Igreja faz memória dos Fiéis Defuntos, recordando os nossos familiares e amigos falecidos. Visitamos os cemitérios, rezamos pelas suas almas e confiamos que, purificados no purgatório, possam entrar na plena comunhão com Deus no Céu. É mais uma expressão da comunhão da Igreja, pois nós não nos esquecemos dos que já partiram e rezamos pelo bem deles.
Não se trata de um culto da morte, mas de uma expressão de fé na ressurreição. É por isso que os lugares onde os cristãos sepultam os seus fiéis se chamam cemitérios, do grego koimētḗrion, “lugar de dormir, de descanso”, pois os que neles repousam aguardam a ressurreição final do corpo, enquanto as suas almas, confiadas à misericórdia de Deus, vivem em comunhão com o seu Pai e Criador. Para o cristão, a morte não é o fim, mas uma passagem para a vida plena. Os antigos pagãos, porém, chamavam a esses lugares necrópoles, “cidades dos mortos” em grego, a morada final.

Nesta memória dos defuntos, recordamos também a nossa própria finitude. A liturgia e a espiritualidade cristã convidam-nos ao memento mori: “Lembra-te que és mortal, que morrerás.” Recordar a morte não é ceder nem alimentar o medo, mas recentrar a vida no essencial: o amor a Deus e o amor ao próximo, libertando-nos da superficialidade que tantas vezes domina e ocupa o quotidiano da vida. É uma chamada de atenção de como andamos a gastar a nossa vida, o nosso tempo e as nossas energias. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma, se perder a sua vida? (Mateus 16, 26)
A Capela dos Ossos, em Évora, com a inscrição “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”, e a capela de Faro, com o aviso “Pára aqui a considerar que a este estado hás de chegar”, exprimem com força esta teologia da memória: a morte recorda-nos a comunhão entre os que já partiram e os que ainda vivem. Lembramo-nos daqueles que viveram antes de nós com a esperança da vida futura.

A memória do passado, iluminada pela fé, torna-se lugar de esperança para o presente: o testemunho dos santos encoraja-nos e inspira-nos; e lugar de esperança para o futuro: o olhar para os defuntos reaviva em nós a fé de que a vida não termina na morte, mas se cumpre na eternidade no Céu e depois na ressurreição final. Nestes dois dias: Todos os Santos e Fiéis Defuntos, os cristãos celebram a comunhão universal da Igreja: os fiéis do Céu, os do Purgatório e os da Terra. Assim, recordar é rezar, e rezar é esperar na fidelidade de Deus, Senhor da vida e da história.
A memória cristã é um lugar de encontro entre Deus e a Humanidade, entre o Céu e a Terra, entre o que foi, o que é e o que virá. Nela, o passado torna-se sacramento do presente, antecipação do futuro e o tempo se transfigura em eternidade.
João Pedro Pita | Pastoral




