Língua Portuguesa. Na folha branca o que a alma dita

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Letras,
sílabas,
palavras 

juntas são como as peças de um puzzle através das quais construímos e expressamos o que sentimos. Como Eugénio de Andrade, fazemos das palavras um cristal ou um punhal, ao estilo de Cesário Verde, com elas pintamos quadros, por letras, por sinais, ou, então, como Camões, eternizamos pessoas e momentos. 

seara-19-linguaAssim, orgulhosas da primeira comemoração do Dia Mundial da Língua Portuguesa, a 5 de maio, pedimos aos nossos alunos que usassem as palavras como forma de eternizar o momento presente. Como seria de esperar, os alunos responderam, de imediato, ao nosso desafio e hoje publicamos alguns desses textos.        

Quisemos que a escrita os ajudasse a lidar com esta nova realidade que, tão abruptamente, nos roubou os sorrisos, os beijos e os abraços, quisemos que as barreiras de tempo e de espaço passassem a ter apenas a importância que cada um lhes quiser dar, deixando que as palavras, (felizmente, das palavras, ainda não temos de guardar distanciamento social) fossem, por momentos, as fiéis depositárias das alegrias, das tristezas, dos olhares e da cumplicidade que agora nos chegam de maneira diferente, mas chegam…chegam através da câmara de um computador, telemóvel ou ipad, chegam, porque as palavras, essas, estão sempre lá… 

Professora Ana Rita Matos | Departamento de Português


Quinhentas e vinte e sete palavras

Vinte e duas. Cinquenta e oito. Duzentas e setenta e uma. Duas mil trezentas e quarenta e cinco.

O número de palavras que constitui uma conversa de conveniência, à maior distância possível, quando nos cruzamos constrangidos com o vizinho no estreito hall de entrada.  O número de palavras que dizemos àqueles com que nos cruzamos em casa, de manhã, antes do pequeno-almoço. O número de palavras que atravessam o telemóvel durante uma conversa com um ente querido com quem não nos podemos encontrar pessoalmente, por muito que a saudade queime. O número de palavras que flutuam, como um vírus, durante uma aula não-presencial.

Neste momento, são estranhas as coisas em que pensamos, as conversas que temos, o modo como agimos…. É estranho tentar olhar para o próximo mês, semestre, ano, década e encontrar um vazio inquietante, um desconforto por ser algo diferente de tudo o que já sentimos e por não termos nada para além de desconhecido à nossa frente. 

É estranho ver as notícias, os números de casos suspeitos, de casos confirmados, de mortes a crescer e ter a nossa mente a tocar ao de leve na forma como, de um momento para o outro, a nossa rotina foi virada do avesso, descosida, amarfanhada e atirada de novo contra nós…  

É estranho querermos voltar a casa e esta casa ser, na verdade, os sorrisos dos nossos amigos mais próximos, os abraços dos familiares mais afastados, o carinho daqueles que nos costumavam rodear mais tempo do que as quatro paredes que agora nos enclausuram.

É estranho levantarmo-nos de manhã sem uma necessidade imperativa de lavar os dentes e as ramelas, de trocar o pijama por roupas decentes, de coordenar a cor das meias com a camisola, de calçar sapatos com sola, de pôr rímel ou gloss e ter a certeza de que cheiramos bem.

É estranho olhar pela janela do quarto e ver um parque infantil e um jardim calmamente deserto, onde às quartas-feiras, quando o sol começa a descer, uma mãe leva o filho para andar, divertido, de baloiço, e ser, dez minutos depois, derrubado pela realidade de que há pessoas a morrer, deitadas em asfixiantes camas de hospital, sem acesso a um ventilador.

É estranha a tentativa de nos refugiarmos no conforto dos nossos hobbys, das nossas séries e filmes, de um quadrado de chocolate ou, compulsivamente, de toda a tablete. 

Tudo isto é, para mim, estranho (exceto, talvez, comer uma tablete inteira de chocolate como forma de consolo), mas é o mundo no qual acordo todos os dias. O mundo no qual abro a janela para entrar luz e motivação, no qual encontro o meu irmão a dormir numa tenda na varanda, a minha irmã a fazer esculturas de lixo e a distribuir abraços aleatoriamente, o meu pai a rir-se das minhas piadas de humor duvidável ou encarcerado no escritório, a trabalhar até às nove da noite, e a minha mãe a suportar tudo como uma impune coluna grega. Não é bem aquilo que teria previsto alguns meses atrás, mas é uma sorte não ser pior, e por isso, estou grata.

Quinhentas e vinte e sete palavras. O número de palavras deste desabafo. 

Leonor Ferreira | 11º T4

 Querido Covid-19,

Já que aí estás, aqui estou eu a escrever-te. Apenas uns mesinhos e já cresceste tanto… Nem a minha prima bebé, que está bem rechonchudinha, cresceu tão rápido. Mas lamento informar: aqui nós, seres humanos, tuas personagens secundárias, não estamos propriamente contentes com o desenrolar da história que criaste. Seria ideal para um filme da Netflix, do HBO, sem dúvida. Até talvez um “hit”. Mas, para a realidade, não é, de todo, satisfatória. 

Dito isto, venho por este meio pedir que te retires da tua missão atual: a tua viagem pelo mundo. Tenho a certeza de que te estás a divertir. Não duvido. Já passaste por tantos lugares maravilhosos… De alguma maneira, consegues multiplicar-te e permanecer em diferentes locais, em simultâneo. Admiro esta tua capacidade, mas não sei se reparaste nos danos que criaste. As bonitas ruas que exploraste estão agora vazias. Sabe-se lá onde foram parar as pessoas? Ah, espera! Afinal, sabemos: ou estão em casa, ou no hospital ou num caixão. Considero que acabaste por perder a diversão da tua viagem. Por isso, porque não parar agora?

Já deves ter gasto demasiado combustível. Começa a poupar e usa o restante para a tua última viagem: a viagem até ao infinito e mais além, onde não podes magoar mais ninguém. Outra alternativa seria também o inferno dos vírus. Mais tarde, se quiseres, podes voltar, mas apenas nas seguintes datas: 31 de fevereiro e dia de S. Nunca à tarde. Nos outros dias do ano, estaremos todos ocupados e não conseguiremos dar-te as devidas boas-vindas. Não te preocupes, que vamos ficar bem sem ti. Melhor: mais que bem, fantásticos, certamente felizes e encantados. Desculpa lá, mas não precisamos de bolas com mini-ramos a vaguear pelo mundo. 

Apesar disto tudo, não posso terminar esta carta sem te agradecer. Mas tu vê lá, não sejas gabarolas! Não quero ver um “virusito” a vangloriar-se das malandrices que fez! A única coisa boa que trouxeste foi união e solidariedade. Por isso, obrigada. Contudo, já aprendemos todos a lição e já podes retirar-te. Se não o fizeres, serei obrigada a escrever uma reclamação. Assim, aconselho-te a abandonares o território terrestre e, como disse, iniciares a tua última viagem para longe de todos os seres vivos e não vivos. Agradeço a compreensão.

Com os melhores cumprimentos, 

Diana Fernandes | 11º T4

A quarentena:

Não sei como descrever
Tudo o que está a acontecer.

O medo, a ânsia,
a corrida para fugir ao vírus.
O medo, a ânsia,
o momento em que percebemos que nada é garantido.

Dou por mim fechada em casa durante dois meses.
Dois meses de laços familiares reforçados triplamente.
Não há passeios, não há contacto com o mundo exterior,
não há amigos, nem relações que não sejam mantidas por computador.

Dói. Custa. As paredes de casa começam a sufocar.
Treino, pinto, danço, canto,
O mínimo raio de sol justifica a minha saída para o pátio de casa para apanhar ar.
Jogo, rio e animo-me porque a esperança é a última a morrer.

Tenho saudades de tudo e então tuas, liberdade, nem se fala.
Tenho saudades vossas, avô e avó,
Mas tenho que fazer o possível para ofuscá-las. 

Vejo séries, falo com amigos e já saio à rua para passear.
Olho pela janela, já vejo vida lá fora, não há motivos para desesperar!
Penso na vida e penso em ti, desenho flores e faço desenhos sem fim.
Não baixes a cabeça, não desistas, porque tu és a primeira pessoa a estar lá para ti.

Com o tempo vou poder dizer “Adeus, medo, e adeus, clausura!”
E se há coisa que aprendi é que há que aproveitar a vida enquanto ela dura!

Leonor Junqueiro | 11º E1

 Miragem

E foi preciso um ser que não vemos
Para perceber a sorte que temos.
Aquelas pequenas coisas tomadas como garantidas
Agora, dávamos tudo para voltar a tê-las nas nossas vidas.
Apenas pela nossa janela observamos a cidade
Tão vazia e sossegada, já não sinto a mesma cumplicidade.
Sonhamos com o dia em que tudo voltará ao normal
E acabaremos com esta guerra desigual.

Teresa Mota | 11ºE1